Deus e o Homem
As religiões apontam contra o Espiritismo aquilo que chamam
de a palavra de Deus, citando os versículos
do primeiro livro de Moisés, na Bíblia,
a Gênese, que afirma haver Deus
criado o homem à sua imagem e semelhança. De acordo com esse princípio,
aparentemente bíblico, o homem tem de ser elemento à parte na criação, porque é
a própria imagem de Deus colocado dentro do Universo. O Espiritismo nos mostra,
porém, que esse conceito, ao invés de elevar o homem, diminui a Deus. Kardec
nos diz, por isso mesmo, no número 12 do capítulo XII de A Gênese:
“Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; estudemo-la,
ao contrário, como se estuda a história da infância dos povos”.
Em O Livro dos
Espíritos, livro básico da doutrina, encontramos a seguinte definição de
Deus: “... é a inteligência suprema,
causa primária de todas as coisas.” Vemos, portanto, que Deus não foi
esquecido, nem ficou à margem, mas continua colocado, com mais justeza e maior
razão, na base de tudo quanto existe.
Comentando a teoria científica de que as coisas do Universo
provêm das propriedades íntimas da matéria, sem intervenção de qualquer outro
princípio, Kardec diz, nesse mesmo livro:
“Atribuir a formação primordial das coisas às
propriedades intrínsecas da matéria seria tomar o efeito pela causa, pois que
essas propriedades são, por sua vez, efeitos que devem ter uma causa.”
Sabemos, além disso, que a natureza do efeito decorre
sempre da natureza da causa. Analisando o Universo, pelo que dele podemos aprender,
vemos que seus efeitos são de natureza inteligente, e se entrosam de maneira
tão harmônica, tão perfeita, que só podem decorrer de uma causa inteligente.
Vemos, nesse ponto, que o Espiritismo estabelece uma estreita
relação entre a Ciência e a Religião, por meio da Filosofia. Sem negar a
existência de Deus, ele contraria a concepção antropomórfica das religiões e
estabelece uma teoria que, embora não tenha caráter experimental imediato, não
deixa de ser tipicamente científica. Deus já não é matéria de crença, simplesmente.
É objeto de dedução filosófica, mas seguindo os métodos de observação do pensamento
científico.
No tocante à formação do homem à imagem e semelhança de Deus, mais uma vez não vemos razão para o
escrúpulo e o espanto dos religiosos. Diz a Gênese
bíblica que o homem foi feito de terra, e embora não aceitando literalmente a
imagem de um boneco de barro feito por alguém, que seria Deus, o Espiritismo
aceita o princípio de que o homem procede do barro terreno, de que a vida
orgânica teve princípio, juntamente com o desenvolvimento mental e psíquico, na
argila fecunda dos primeiros tempos da formação planetária. A Bíblia nos apresenta, pois, apenas uma
imagem daquilo que teria ocorrido, na distância dos milênios. Deus falou, através da Bíblia, por meio de parábolas, como
tantas vezes falou o Cristo, na sua passagem terrena, para os homens de seu
tempo.
“Mas – dirão os religiosos apegados ao texto –, e onde ficam
a imagem e semelhança de Deus, na formação do homem?”
De fato, não podemos conceber Deus como um animal vertebrado,
da classe dos mamíferos, embora superior ao homem, por atributos cósmicos que
esse ainda não conseguiu obter. O Espiritismo não admite que a nossa forma
orgânica, material, seja a forma do próprio Deus.
À pergunta formulada por Allan Kardec, no primeiro capítulo
de O Livro dos Espíritos: “Pode o homem compreender a natureza íntima
de Deus?”, responderam os espíritos que o assistiam no trabalho de codificação
da doutrina:
“– Não, pois lhe falta o sentido necessário.”
Mais adiante, no mesmo capítulo, o próprio Kardec esclarece:
“A inferioridade das faculdades do homem não lhe
permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da Humanidade o
homem o confunde muitas vezes com a criatura, cujas imperfeições lhe atribui;
mas, à medida que nele se desenvolve o senso moral, seu pensamento penetra melhor
no âmago das coisas; então, faz idéia mais justa da Divindade e, ainda que
sempre incompleta, mais conforme à sã razão.”
Não vemos nenhum motivo para negar que o homem tenha
sido feito, se assim se pode
realmente dizer, à imagem e semelhança de
Deus, embora não concordemos que Deus tenha a forma orgânica do homem. E é
o próprio O Livro dos Espíritos que
nos fornece os dados necessários a uma interpretação espírita desse problema.
Encontramos no número 77 do seu primeiro capítulo a seguinte pergunta de Kardec
e a respectiva resposta dos espíritos:
“Os espíritos têm forma determinada, limitada e
constante?”
“– Para vós, não; para nós, sim. O espírito, se o quiserdes,
é uma chama, um clarão, uma centelha etérea.”
Ora, se compreendermos que o homem não é o seu corpo
animal, mas o espírito que anima esse corpo e realiza através dele a sua evolução
na vida terrena, veremos que as palavras da Bíblia
não foram prejudicadas pela interpretação espírita de Deus; e veremos também
que há uma relação mais íntima e profunda, de essência e não de forma, entre
Deus e o homem, do que a relação materialista estabelecida pelos exegetas
bíblicos das várias religiões.
J. Herculano Pires
O Sentido da Vida
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