sexta-feira, 5 de abril de 2013

Do individuo como representação coletiva


  1. Do individuo como representação coletiva

Na tribo ou na horda, nas civilizações agrárias ou nas civilizações teocráticas, o indivíduo é apenas uma peça da engrenagem social. Funciona segundo as exigências do meio, guiado pelas forças operantes da estrutura sócio-cultural. Denis de Rougemont demonstrou como essas forças determinam a sujeição absoluta do indivíduo à estrutura. Quando ele se reconhece dotado de características próprias, realizando-se na transcendência horizontal da relação social, destaca-se da massa. Corre então o risco da excomunhão. Mas se dispuser de estrutura individual suficientemente unificada (personalidade) poderá elevar-se sobre o meio, iniciando a fase da transcendência vertical. Nesse caso ele se projeta como uma forma de representação coletiva. Será então o chefe, o líder, o guia, integrando o grupo dirigente da comunidade, a sua inteligência. Mas assim mesmo estará freado pelos condicionamentos sociais, terá de fazer concessões à moral social, aos sistemas estabelecidos, às crenças vigentes, ao contexto geral da tradição. Se quiser sobrepor-se a esses fatores poderá ser esmagado pela pressão da massa, traduzida nas sanções institucionais. Foi o caso de Sócrates, como foi o caso de Jesus.
Nas civilizações sociocêntricas do passado, que se desenvolviam isoladas, esse processo de representação coletiva, que na tribo se dividia entre o cacique e o pajé – o primeiro representando o poder humano, o segundo o poder espiritual, fundiu-se na síntese do Rei-Deus, sagrado e ungido para dirigir e defender o povo. A reação natural à rigidez dessa institu-cionalização perigosa se fez sentir no campo das manifestações paranormais, através de profetas, oráculos e pitonisas. João Batista, degolado por ordem de Herodes, é talvez o símbolo mais vigoroso da profecia social como revolta contra a sagração artificial dos reis-deuses. Mas a representação coletiva atingiu o seu ponto máximo na figura do Messias – o sol fecundador das messes após as agruras do inverno, segundo a tese mitológica. Os messias eram os salvadores e ao mesmo tempo os vingadores, os que vinham salvar os humildes e castigar os poderosos. Investidos da sagração divina pelo próprio Deus, centralizavam, na sua individualidade privilegiada, os poderes da Terra e do Céu. Os seus ensinos constituíam uma revelação divina; pela boca desses arautos falava o próprio Deus.
Kardec analisou esse processo e definiu as revelações messiânicas como pessoais e locais, típicas das civilizações isoladas, dirigidas a uma comunidade determinada em sua localização geográfica. Nos fins do ciclo de isolamento, quando a síntese sócio-cultural greco-romana tentava abranger o mundo e criava condições novas de vida, o messias judeu, Jesus de Nazaré – que mais tarde seria designado, significativamente, pelo nome do messias grego: Cristo, apresentou-se ainda como revelador pessoal e local, mas já abrindo perspectivas, em seus ensinos, para a universalidade que caracterizaria o desenvolvimento do Cristianismo, rompendo ao mesmo tempo o sociocentrismo judeu e as pretensões romanas de hegemonia. A reação, tanto judaica quanto romana, foi esmagadora, mas não conseguiu deter o fluxo natural da evolução humana. A Igreja Cristã, formada segundo os modelos judaico e pagão, por força das determinantes históricas, apresenta-se então como curiosa síntese do Templo de Jerusalém e do Capitólio. A Cadeira de São Pedro substitui, ao mesmo tempo, a Cadeira de Moisés e o Trono de César. O Deus-Pai de Jesus se reveste das características de Júpiter Capitolino e Roma volta a dominar o mundo. O Bispo de Roma transforma-se na representação coletiva das massas bárbaras convertidas ao Cristianismo. Na figura do Papa concentram-se os poderes da Terra e do Céu.
Entretanto, no milênio medieval o processo dialético prossegue, lento e seguro. Um mundo novo está fermentando nas querelas absurdas e uma nova revelação está sendo elaborada nas suas entranhas psíquicas. A Filosofia Grega inflama o pensamento cristão, despertando-o para a compreensão dos poderes do homem, do valor intrínseco do ser humano. O dogma da encarnação humana de Deus, reflexo das teorias egípcias e indianas do avatar búdico, produz efeitos contraditórios. De um lado, reforça temporariamente o conceito do homem-deus do passado; de outro lado, desperta a atenção dos pensadores para os poderes divinos do homem. A subver-são vai se confirmar nessa linha com o desenvolvimento do Humanismo. A Ciência renascerá das cinzas de Aristóteles e o homem se fará o revelador racional dos mistérios encobertos pela mística religiosa.
As revelações pessoais e locais estão definitivamente superadas. Os messias do passado tornam-se místicos ignorantes, incapazes de revestir-se dos poderes da representação coletiva. A Revolução Francesa proclamará a supremacia da razão sobre todo o passado fideísta. Kardec poderá então distinguir dois tipos de revelação, ambos divorciados da mística e do mistério: a revelação científica, feita pelos pesquisadores dos mistérios da Natureza, e a revelação espiritual, feita através da mediunidade e da pesquisa dos fenômenos paranormais, das condições do mundo supra-sensível. A partir desse momento as revelações pessoais, locais ou não, não terão nenhum sentido. A verdade não pertence a ninguém em particular, a nenhum profeta, messias ou vidente. É um patrimônio comum, ao alcance de todos os que se esforçam para descobri-la. A revelação é coletiva.
O indivíduo como representação coletiva existiu e funcionou nas dimensões do passado, como exigência natural de um mundo fechado em si-mesmo, incapaz de superar os condicionamentos sócio-mesológicos de cada civilização isolada, entregue às suas próprias forças. No mundo novo que surgiu da abertura cristã, tendo por paradigma a especulação ateniense e por bússola a mensagem racional do Evangelho, não há mais lugar para a autoridade individual no tocante à problemática da verdade, que brota do real-em-si e não das interpretações individuais, sujeitas a condicionamentos desconhecidos. Nenhum indivíduo transformado em representação coletiva e nenhum colégio de iluminados por sabedoria infusa pode decretar a verdade. A Filosofia dedutiva e sistemática do passado cedia lugar à lógica indutiva, liberta das predeterminações arbitrárias dos sistemas.

J. Herculano Pires

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